- Agora vítimas da falta de assistência,
famílias enfrentam dificuldades para tratar crianças afetadas pelo incêndio em
creche de Janaúba. Há suspeita de desvios de doações
JANAÚBA
(por Luiz Ribeiro/Jornal Estado de Minas e portal UAI) – Os pequenos estavam
animados e felizes. Afinal, já haviam começado as comemorações da Semana da
Criança. Na véspera, muitos deles tinham passeado em um clube com piscina pela
primeira vez na vida, e naquela manhã teriam pula-pula e outras brincadeiras.
Mas, em vez da esperada diversão, teve início uma via-crúcis que começou em medo
e completa um ano na sexta-feira, marcada de dor e desamparo. Às 9h30 daquela
quinta-feira, 5 de outubro, o vigia Damião dos Santos, de 50 anos, invadiu a
Creche Gente Inocente, em Janaúba, no Norte de Minas e ateou fogo na sala onde
os alunos estavam, matando a si próprio e provocando as mortes de outras 13
pessoas, entre as quais 10 crianças. Mais de 50 pessoas ficaram feridas.
Foto: Solon Queiroz/Esp. EM
Construída com recursos
privados, a nova Cemei leva o nome da professora que morreu tentando salvar os
alunos: frescor que não apaga a saudade.
Apesar
da enorme comoção provocada pela tragédia, que teve repercussão internacional,
as famílias das vítimas do incêndio que devastou a Gente Inocente – moradoras
de áreas carentes de Janaúba – relatam que enfrentam hoje a falta de
assistência do poder público e de recursos para manter tratamentos médicos. Nem
mesmo políticos que à época se manifestaram sobre a tragédia e agora estão em
campanha eleitoral aparecem agora. No lugar do antigo prédio foi construída
outra creche, com recursos particulares. Mas o frescor do moderno prédio,
inaugurado em agosto, não é suficiente para apagar a permanente saudade
daqueles que se foram. E enquanto o sofrimento se perpetua no desamparo, surge
a suspeita de que produtos médico-hospitalares destinados às vítimas na
mobilização nacional que sucedeu à tragédia tenham sido desviados.
Foto: Solon Queiroz/Esp. EM
O menino Rhuan com a mãe
Dayane: faltam recursos para tratar a criança, que teve 30% do corpo queimado e
necessita de cirurgias reparadoras.
A
suspeita é revelada pelo presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e
Sobreviventes da Tragédia da Creche Municipal Gente Inocente de Janaúba
(AVTJana), o protético Luiz Carlos Batista, viúvo da professora Heley Batista,
que morreu queimada tentando salvar seus alunos e dá nome ao novo Centro
Municipal de Educação Infantil (Cemei). Batista afirma que ainda não sabe quem
desviou os materiais e para onde eles foram levados e que vai levar à frente
investigação sobre o tema. “Vamos pedir a prestação de contas da administração
pública e das entidades que receberam as doações. Quando tivermos documentos em
mãos e se for confirmado qualquer desvio pediremos providências ao Ministério
Público”, afirma Batista. Segundo ele, uma quantidade de materiais doados como
fraldas, medicamentos, cremes e outros produtos usados no tratamento de
queimados não chegou às vítimas do incêndio no Cemei. Ele ressalta que a
associação ainda não verificou a suspeita de desvios dos produtos porque
priorizou o tratamento das vítimas. “Nosso objetivo sempre foi focar na saúde
das crianças (feridas), cuidar delas de forma correta”, disse o protético. Para
ele, o poder público tem tratado as vítimas “com descaso” e não oferece a elas
uma assistência adequada.
Batista
assegura que a AVTJan está usando o dinheiro das doações para comprar medicamentos
e produtos especiais, como cremes específicos para tratamento de vítimas de
queimaduras. Por outro lado, ele afirma que “as famílias das crianças não estão
recebendo uma assistência médica adequada às suas necessidades. Elas precisam
de tratamento para queimados e Janaúba não dispõe desse serviço. A prefeitura
diz que nem os cremes e hidratantes necessários estão disponíveis na rede
pública. O atendimento precisa ser feito em outras cidades”, conta. E cobra: “O
culpado pela tragédia foi quem ateou fogo e destruiu a creche. Mas a
responsabilidade recai sobre quem? A responsabilidade é da administração
pública em todos os sentidos. Professores e alunos, enquanto estão no
educandário público, estão sob responsabilidade do município”.
Foto: Solon Queiroz/Esp. EM
Jéssica
e os filhos Heitor e Everton (D), diagnosticado com rinite crônica creditada à
inalação da fumaça. Família teve pedido de ajuda negado.
RODA
DE INFORTÚNIOS
Dayane
Cristina Dias, de 27, enfrenta dificuldades para o tratamento do filho, Rhuan
Emanuel Dias Barbosa, de 6, uma das vítimas do incêndio na Gente Inocente. O
menino teve 30% do corpo queimado e ficou dois meses e seis dias internado na
Santa Casa de Montes Claros, onde passou por várias cirurgias. Com fortes
cicatrizes, ele continua recebendo os cuidados em casa, mas ainda vai
necessitar de cirurgia plástica reparadora e a família não tem como bancar o
tratamento. “Eu queria uma maior assistência, mais especializada”, diz Dayane,
lamentando as dificuldades financeiras. A mulher conta que após a tragédia na
creche foi obrigada a deixar o trabalho de operadora de caixa de supermercado
para cuidar do filho. Segundo ela, o marido, Djalma Barbosa, recebe, no máximo,
R$ 1 mil por mês, como embalador de banana. Fora isso, conta com R$ 500
destinados pela prefeitura às vítimas feridas no incêndio. Os recursos já
escassos vão diminuir em dezembro, quando será paga a última parcela da
“indenização” da administração municipal. “Aí, não sei como vai ficar”, diz
Dayane.
Foto: Solon Queiroz/Esp. EM
Data
de alegria transformada em dor: Valdirene põe carrinho no túmulo do filho, no
dia em que ele faria 6 anos.
A
mãe de Rhuam revela que comprou um climatizador para dar mais conforto ao filho
diante do forte calor de Janaúba – “para ele não coçar muito a pele” –, mas seu
drama piorou. “A conta de luz está vindo muito alta e a conta de água também.
Não tenho dinheiro para pagar. A feira acabou, minha despensa está praticamente
vazia. Aqui em casa está faltando até pão”, diz Dayane, que mora no Bairro dos
Barbosa. Mesmo com tanto sofrimento, ela encontra motivo para celebrar a vida.
“Só tenho que agradecer a Deus por meu filho estar vivo. Sinto muito a dor das
mães que perderam suas crianças”, confessa.
SEM
AJUDA Jéssica Borges de Oliveira, de 25, é mãe do pequeno Everton, de 3, que
estava na creche em 5 de outubro de 2017 e escapou. Ela conta que chegou a
pensar que o filho tinha “morrido queimado”. Mas, se por um lado comemora a
vida de Everton, por outro, lamenta os sucessivos dramas: desde o dia do
incêndio deixou o serviço como empregada doméstica. “Na época, fiquei sem lugar
para deixar o menino”, conta. Ela disse que Everton passou a apresentar rinite
alérgica, que seria consequência da inalação de fumaça tóxica durante o
incêndio na creche. A ex-empregada doméstica afirma que chegou a pedir ajuda da
Prefeitura de Janaúba. “Mas disseram que só podem dar remédio para as crianças
que foram queimadas ou que ficaram internadas, o que não foi o caso do meu
filho.”
O
médico disse que Everton precisa de um ambiente mais fresco e ventilado”, disse
Jéssica. Justamente o oposto do que o menino encontra na casa onde vive com a
mãe e dois irmãos – Cauã, de 8, e Heitor, de 2: dois cômodos apertados, que nem
janela têm, sendo que o fogão fica para o lado de fora, no quintal, onde há
outros dois barracões. A ex-empregada doméstica conta que há quatro meses foi
abandona da pelo companheiro. Sobrevive apenas com R$ 336 do Bolsa-Família.
“Esse dinheiro não dá para quase nada. Recebo ajuda dos outros. Tem hora que os
meninos pedem leite e não tem”, lamenta.
Foto: Solon Queiroz/Esp. EM
Paulo e Ana Paula com o
pequeno Pablo Cauã. O bebê nasceu a pós a tragédia e carrega no nome homenagem
ao irmão que perdeu a vida.
Na
sexta-feira, a reportagem enviou perguntas à Prefeitura de Janaúba – que na
época da tragédia criou comissão de atendimento às famílias – sobre a suspeita
de desvios de donativos e as reclamações das famílias quanto à assistência. A
assessoria da prefeitura confirmou o recebimento da mensagem e ficou de
responder. Mas não houve resposta até o fechamento desta edição.
TRISTEZA
E SAUDADE SEM FIM
Com
um carrinho nas mãos e sob o forte sol de Janaúba, a balconista Valdirene Rocha
Santos, de 29 anos, foi até o Cemitério São Lucas da Silva na quinta-feira,
para cumprir um ritual, que antes era só de alegria: entregar o presente de
aniversário o filho. Desta vez, o brinquedo foi depositado no túmulo de Mateus
Felipe Rocha Santos, uma das vítimas da tragédia da Creche Inocente, que completaria
6 anos naquele dia, num ato de amor, saudade e dor que não têm fim.
“Nunca
imaginei que um dia fosse visitar o túmulo do meu filho, ainda mais no
aniversário dele”, disse Valdirene, que viu sua vida mudar completamente desde
o incêndio criminoso na creche Gente Inocente, em 5 de outubro de 2017. “Cada
vez que vou ao cemitério, sinto vontade de abrir o túmulo e tirar meu filho lá
de dentro. A saudade é muito forte”, diz. A balconista já vê crescer a dor à
medida em que o aniversário de um ano da tragédia se aproxima. “Será como se eu
tivesse vivendo tudo de novo, um dia de muita angústia”, prenuncia. Na
sexta-feira, as vítimas serão lembradas em uma missa em Janaúba.
O
trabalhador rural Paulo Pereira dos Santos, o Bira, de 29; e a doméstica Ana
Paula Rosa da Cruz, de 21, perderam na tragédia Juan Pablo Cruz Santos, de 4,
que era o único do casal. Na ocasião, Ana Paula estava grávida e em 26 de
fevereiro ela deu à luz o segundo filho, que recebeu o nome de Pablo Cauã, hoje
com 7 meses. Bira revela que até tentou registrar a criança com o nome de Juan
Pablo. “Mas teve burocracia e o cartório disse que não podia fazer isso”,
relata.
Foto: Solon Queiroz/Esp. EM
Nelsir Silva, com camisa
estampada com foto de Ana Clara, a filha que perdeu no incêndio, Victor e as
sobreviventes Julie Mariah e Ludmila.
Ana
Paula disse que ficou muito feliz com a “chegada” de Pablo Cauã. “Mas a alegria
não apaga a tristeza da perda do meu outro filho”. Até hoje, ela não se
conforma. “Fizeram uma creche nova, com segurança. Mas, deveriam ter feito
antes de acontecer a tragédia”, reclama. O trabalhador rural se emociona ao
recordar do filho Juan Pablo. “Ele era muito apegado comigo”, diz.
A
mistura de dor e saudade também marca o lar de Nelsir de Jesus Silva, de 35, e
Luana Ferreira da Silva, de 28, que contavam com quatro filhos matriculados na
creche incendiada e perderam um deles, a pequena Ana Clara Ferreira Silva, de
4. Duas filhas ficaram feridas e permaneceram internadas vários dias em
hospital: Julie Mariah, então com 3 anos, e Ludmila, com 6. O menino Victor
Hugo, agora com 6 anos, escapou porque no dia tragédia estava com conjuntivite
e não saiu de casa.
A
pequena Ana Clara foi a primeira das vítimas do incêndio a ser sepultada, sob
forte comoção, no dia seguinte à tragédia. Luana acompanhou o enterro de Ana
Clara e, imediatamente, retornou para Montes Claros, onde as outras duas filhas
estavam internadas. “A saudade da minha filha cada vez aperta mais”, afirma
Nelsir, que trabalhava como operário em um frigorífico e está afastado há e um
ano e seis meses por causa de um acidente de moto.
Nenhum
dos filhos do casal que sobreviveram à tragédia está matriculado no Cemei Heley
Abreu, construída no lugar do antigo prédio incendiado. Os meninos Victor Hugo
e Ludmila estão em uma escola de ensino infantil. Luana conta que depois do
incêndio preferiu não levar mais a menina Julie Mariah para uma creche. “Com a
perda de Ana Clara, senti-me impotente diante do que ocorreu. Tive sentimento
de culpa”,relata. A antiga creche contava com cerca de 75 alunos anos. O “novo”
Cemei construído no lugar dela conta com 45 alunos e dispõe de sistema de
segurança completo, ao contrário do antigo prédio, que não tinha sequer
extintores.
A
dor sem fim também é sentida pelo protético Luiz Carlos Batista, viúvo da
professora Heley Abreu Silva Batista, de 43, que morreu como heroína, tentando
salvar os alunos no incêndio da creche em Janaúba. “Só posso dizer que passar
um ano sem a Heley é algo muito difícil. Ela era tudo para mim e para minha
família. Tive que me adaptar à nova vida. Virei pai e mãe”, afirma Luiz Carlos.
A professora heroína deixou os filhos Breno, de 16, Lívia, de 13, e Olavo, que
estava com apenas um 1 e 2 meses quando perdeu a mãe. Os três vivem com o pai.
ESQUECIDOS
ATÉ NA CAÇA AOS VOTOS
As
vítimas da tragédia de Janaúba foram esquecida até mesmo por políticos em
campanha eleitoral. Por ocasião do incêndio na Creche Inocente, em outubro de
2017, Janaúba recebeu as visitas do governador do estado, de dois ministros
(Saúde e Educação) e do senador Magno Malta (PR/SP), presidente da Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) de Maus-tratos Infantis, entre outros.
Lideranças políticas também se manifestaram por meio de homenagens prestadas à
professora Heley Abreu, heroína da tragédia, a quem foi conferida pelo
presidente Michel Temer a Ordem Nacional do Mérito, em memória. Passada a
comoção, os políticos sumiram. Não apareceram para ajudar ou prometer assistência
às famílias das vítimas nem mesmo durante este de caça aos votos, reclamam
moradores. O caso, suas causas e implicações foram esquecidos também nos
programas eleitorais.
“Até
o momento a gente não teve contato com políticos. Pelo contrário, não tivemos
nenhuma visita”, lamenta o presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e
Sobreviventes da Tragédia da Creche Municipal Gente Inocente de Janaúba
(AVTJana), o protético Luiz Carlos Batista, viúvo da professora Heley Abreu
Batista, morta como heroína na tragédia ao tentar salvar as crianças no meio
das chamas.
Para
o presidente da AVTJana, parlamentares e governantes deveriam apoiar as
famílias das vítimas da tragédia com ações mais duradouras. “O que está
faltando é desenvolver programas que possam ajudar as famílias, no presente e
no futuro, porque a gente vê a situação dessas crianças e percebe que algumas
vão ficar comprometidas. Deus queira que não, mas acho que elas vão precisar de
mais apoio do governo”, afirma.
Batista
destaca também que a cidade precisa de melhorias no setor de saúde. “Janaúba
tem que se estruturar melhor. Implantar um centro de queimados seria um bom
projeto, não pensando em uma nova tragédia, mas até para ajudar outras cidades.
A cidade poderia ser um polo no setor”, sonha o viúvo da professora Heley
Abreu, acrescentando que o Hospital Regional de Janaúba “precisa muito de uma
estrutura melhor e isso vai depender dos políticos”.
“Nem
um candidato veio aqui. Acho até uma vergonha para os políticos, que não
ajudaram em nada. Não sou a única que reclama, as outras mães também. Eles não
procuraram a gente para nada”, diz Dayane Cristina Dias, de 27, mãe do menino
Rhuan Emanuel Dias, de 6, que ainda se recupera das queimaduras que sofreu no
incêndio criminoso no Centro Municipal de Educação Infantil (Cemei). “Os
candidatos deveriam vir para ver pelo menos o que estamos necessitando. A gente
precisa de atenção e não recebe nada. Fico até sem palavras diante disso”,
afirma Dayane.
SEM
AR O pedreiro Elton Batista de Oliveira, de 53, conta que ajudou a retirar as
crianças da creche Gente Inocente durante o incêndio de 5 de outubro. “Salvei
mais de mais 30 meninos”. Ao mesmo tempo que se orgulha do seu momento de
heroísmo, entretanto, ele lamenta do drama que passou a viver de lá pra cá. Elton
inalou fumaça tóxica e chegou a ser internado no Centro de Tratamento Intensivo
(CTI) do Hospital Regional da cidade após a tragédia. “Saí do hospital e não
consegui trabalhar mais”, afirma o pedreiro, contando que sofre várias
sequelas. Uma delas é a dificuldade para respirar. Ele conta que está recebendo
R$ 500 por mês, valor destinado pela Prefeitura de Janaúba às vítimas que
tiveram ferimentos – a última parcela será paga em dezembro. “Preciso de ajuda.
Pois gasto muito com remédio”, diz o pedreiro. (Fonte: Jornal Estado de
Minas/Portal Uai, edição de domingo, 30 de setembro de 2018, no link https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2018/09/30/interna_gerais,992914/vitimas-do-incendio-em-creche-janauba-enfrentam-desamparo-1-ano-depois.shtml )
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